O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

16.6.04

A Exposição!

Que prazer maior poderia encontrar Afonso ao chegar em sua cobertura, depois de horas no trabalho, em frente a um monitor de computador, vendo os numerozinhos subindo e descendo, que preparar seu whisky, tirar a roupa, ligar a banheira e ir observar a passagem dos sete minutos e meio necessários para enche-la na imensa sacada. O whisky na mão direita, a mão esquerda sobre a cabeça, as pernas abertas, apoiando o peso do corpo sobre a perna esquerda. Era como se o mundo todo lá em baixo se rendesse à sua forjada grandeza.

Naquela noite, um amigo havia lhe falado de um vernisage de um artista paulistano que era a promessa da arte contemporânea no Brasil. “Urbanóides” ou “Urbanídeos” era o título da exposição, não importava muito pois, como tantos outros, Afonso ia para ser visto, comer os maravilhosos canapés e ligeiramente se embriagar com bons vinhos. Comprar um quadro nem pensar, ainda estavam no armário aqueles que comprou em Embú das Artes para impressionar uma loira de farmácia que só lhe deu dores de cabeça.

Estavam na tal exposição o Edgar Scandurra, a Rita Ribeiro, o Marcelo Rubens Paiva, entre outras figuras que freqüentam a noite paulistana, sem contar a turma de cabelos azuis, amarelo ouro, rosa, com suas tatuagens extravagantes e cheirando a brechó. Seguindo o protocolo, Afonso bebeu um vinho com os amigos e seguiu a peregrinação recheada de comentários eloqüentes e vazios pela exposição.

Realmente o artista era impressionante, captou com maestria a essência da vida urbana em São Paulo. O performático da Paulista, aquele com as roupas coloridas e sua sombrinha que usa canteiro central como passarela, estava na primeira tela, depois o travesti mendigo, com suas bochechas enormes acompanhadas pela tristeza dos traços em sua face, em seguida os homossexuais da consolação, os playboys do Açaí na Faria Lima, o pastor solitário da Sé e ...estava lá: o corpo nu, o whisky na mão direita, a mão esquerda sobre a cabeça, as pernas abertas, apoiando o peso do corpo sobre a perna esquerda.

Afonso sentiu uma vertigem iminente e as pernas bambearam. Queria estar em qualquer lugar, menos ali em frente a sua imagem desnuda em uma posição tão confortável. Uma senhora ao lado agitou os olhos notando a semelhança entre o personagem e o observador asustado, porém, Afonso estava muito mais amarelo que aquela figura tão descontraída.

Correu os olhos até a plaqueta do preço, onde o nome do quadro dava o golpe de misericórdia em sua auto-estima, estava lá: ”Estrañesa Insólita”. Queria imaginar onde sua nudez pudesse valer os quatro mil e quinhentos reais em negrito e rapidamente quis imaginar onde arranjaria esta quantia para tirar da vista daquele povo todo seu momento mais sublime, mais introspectivo. A bolinha vermelha pregada na plaqueta delatava o agrado do público! Quem havia comprado sua nudez? Com um discreto movimento no pescoço, passou os olhos nas pessoas ao redor. Devia ser alguém rico, um excêntrico, é como chamam os loucos ricos. Esses marchants são umas raposas na pele de cordeiro, com certeza o preço triplicaria se Afonso se mostrasse interessado.

Pensou em pular na frente do quadro e arranca-lo dali, mas, e a Arte? Ficou imaginando como o artista deveria se orgulhar daquela desconfortável obra, para pedir quatro mil e quinhentos reais, o vernisage tinha acabado de começar e já haviam comprado o quadro! Uma tempestade de pensamentos caiam-lhe à cabeça, “Arte pela arte”, “A história da humanidade passa na ponta do pincel de um grande pintor”, “Ali onde você vê uma pedra eu vejo um anjo, basta eu tira-lo dali”. E a tal história sobre um artista paulistano que era a promessa da arte contemporânea no Brasil, por um instante Afonso até se imaginou famoso, uma Monalisa moderna, o ícone da sociedade no homem nu que segura a cabeça e um copo de whisky.

Caiu em si! O sucesso é uma faca de dois gumes! Naquela posição, os homossexuais não o deixariam em paz e as mulheres iriam sempre olha-lo como um esquisitão. Imaginar que não poderia mais freqüentar anonimamente a noite cultural paulistana era horrível, comer canapés sendo observado perde a graça. A ligeira embriagues? Nem pensar! Isso tudo sem falar no fim de sua privacidade. Quantas e quantas pessoas iriam querer conhecer sua vida, excursões de grupos de terceira idade à sua enorme sacada, a revista Caras especial “Estrañesa Insólita” com fotos inéditas do seu apartamento. Pior ainda seria virar uma celebridade naturalista, as pessoas pedindo para que tire a roupa em público, como se aquilo fosse tão natural, logo Afonso que só usa o mictório se não tiver nenhum vaso sanitário livre.

Olhou para a saída, fixou os olhos em um ponto qualquer fora dali, movimentou o corpo naturalmente, como se estivesse saindo de sua banheira para voltar a seus Cem Anos de Solidão que a dias não saia de sua cabeceira. Enquanto tudo ia ficando para traz o quadro continuava ali, pendurado na sua cabeça. O pior de ser observado é se sentir observado. Afonso simulou um sorriso, pegou mais um copo de vinho, bebeu em uma talagada só, devolveu à bandeja, e sua mão retornou com outro, agora bebido conservadoramente. Este segundo ficou com o rapaz do estacionamento.

Naquela noite Afonso não dormiu. No dia seguinte, chegando do trabalho, preparou seu whisky, tirou a roupa, ligou a banheira e foi observar a passagem dos sete minutos e meio para enche-la na imensa sacada, o whisky na mão direita, a mão esquerda sobre a cabeça, as pernas abertas, apoiando o peso do corpo sobre a perna esquerda, vestido em um confortável roupão azul ainda cheirando a plástico e a dois metros do parapeito.