O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

21.6.05

A Seriema e a Gentileza

Minha auto-estima está em alta, me sinto bem, voltei a ler muito, a tocar violão e a me preocupar com o ócio e o sedentarismo. Este pacote inclui o retorno às trilhas, ainda em projeto. Para me preparar, estou quase todos os dias caminhando em um parque nacional próximo à minha casa, em uma pequena trilha de cinco quilômetros no cerrado.

A trilha é linda. O cerrado preservado, o chão repleto de cristais pisados por pés apressados, o curioso brotar de águas nos pontos mais altos dos morros e a variação da vegetação decorrente dos regatos formados. Em meu esforço de manter um olhar de turista sobre o local, observo as pegadas de animais no barro e nas portas das várias tocas que margeiam o caminho, e até mesmo as fezes que encontro, tentando reconhecer se é um carnívoro ou herbívoro.

Acho que você pode estar se perguntando: animais selvagens? Carnívoros? Pois é, a pouco mais de dez quilômetros dos palácios, das CPIs, dos Geffersons, vive uma fauna riquíssima. Para se ter uma idéia, na área permitida à visitação há mais macacos-pregos que pardais, há cutias comendo restos de pipocas deixadas pelas crianças, até mesmo já vi uma anta às 6 ou 7 hs da manhã tomando um banho na piscina pública. Em meu raso conhecimento sobre fauna, posso garantir: animais silvestres não atacam se não estiverem acuados, feridos ou defendendo sua cria, por isso, os únicos ataques que se ouviu falar no parque foram de uma matilha de cães domésticos abandonados que foram caçados e exterminados e um ou outro bêbado nos fins-de-semana incomodando as moças à beira da piscina.

Eu começo a trilha pelo lado que considero menos atrativo, é importante deixar o melhor para os últimos minutos da hora que levo para atravessar. Durante o percurso, sempre encontro gente vindo e todos me cumprimentam, é curioso notar que próximo à piscina fingimos não nos vermos e, entrando na estrada de terra, a velha tradição da gentileza entre trilheiros permanece, mesmo em um percurso pequeno. Outro dia notei que ninguém passava por mim, nem mesmo um senhor barrigudo de barba branca e bengala que sempre está por lá. Foi uma viajem insólita e solitária, a catarse de meus pensamentos não havia sido interrompida nenhuma vez.

Nos últimos cinco minutos da caminhada encontrei a resposta para minha maravilhosa solidão: uma seriema majestosamente interrompia o caminho. Provavelmente, todos que foram entrar na trilha deram de cara com a pernalta de pelagem marrom, bico alaranjado, maquilagem azul ao redor dos olhos e unhas enormes. Confiando em minha previsão de que ela fugiria à aproximação humana, segui em sua direção. Me enganei. Elegantemente, ela começou a caminhar no meu rumo, então pensei: Esse bicho fez um ninho e está protegendo os ovos. Agitei os braços, ergui dois galhos para tentar impor respeito, joguei pedras (próximo, é claro) e nada, a danada continuou sua marcha para cima. Resolvi voltar, mas, já tinha andado quase uma hora, não estava disposto a caminhar tanto. Vi um corregozinho e resolvi utilizar meus conhecimentos de trilheiro. Tinha certeza que aquele córrego iria dar na sede do parque. Entrei na mata e segui o filete d’água até um ponto que não conseguiria mais andar sem a proibida ajuda de um facão. Quando voltei à estradinha, dei de cara com a seriema. Nós dois nos assustamos, ela pulou de lado e eu pulei na direção da saída (graças a Deus). Quando notei que estava no rumo certo, em uma cinematográfica arrancara, disparei a correr. Não sei se ela veio atras, na velocidade que estava, uma olhadela me derrubaria.

Amanhã volto à trilha. Se ela estiver por lá, vou recorrer à boa e velha gentileza de trilheiro, além de começar o trajeto pelo lado que costumo sair. Tenho que lembrar que sou eu quem está invadindo.