O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

30.4.05

Drummond e os Cinqüenta Cruzeiros


Amanhã, dia 1o de maio, dia do trabalhador, quem recebe salário mínimo vai poder comprar duas cestas básicas. Não é muito, mas, quase dobrou a capacidade de compra em quatro anos.

No ano de 1978, o salário mínimo era de Cr$1.560,00 (cruzeiros), quatro anos depois, no começo do ano de 1982, já estava em Cr$11.928,00, quase 8 vezes mais. De que serviriam esses números todos ao que vou contar, se o fato da desvalorização de nossa moeda não fosse a causa, naquele período, da passagem em nossos bolsos de uma infinidade de cédulas diferentes, utilizando personalidades de nosso país nas suas faces?

As pessoas com mais de 35 anos podem ainda se lembrar de uma gíria corrente naquele curto período de quatro anos, que era "um Barão". O Barão do Rio Branco estampava a cédula mais desejada. Em 86 saiu de circulação.

Foram mais dezenove personalidades como valores de face nas cinco reformas monetárias que sofremos em um período de dez anos. Podemos imaginar a reação de Villa-Lobos ao saber que, em alguns lugares do país, eram necessárias duas dele para pagar um ônibus? E ter que acrescentar uma moeda a dois Machados de Assis para comer um salgado?

Eu estava mexendo em umas gavetas antigas quando achei um pedaço de cédula. Não lembro quando nem como ela foi parar ali. Uma tarja na frente, corrigindo o valor, diz "50 cruzeiros", logo abaixo tem um manuscrito quase ilegível e uma assinatura famosa: Carlos Drummond de Andrade. Quando viro a cédula, descubro o motivo daquele pedaço de papel, sem valor, ter sido guardado com tanto cuidado. O tempo passou e a poesia, em uma letra proibitiva aos míopes, desprezou as crises financeiras sofridas. Vou dividir essa fortuna com você:

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Carlos Drummond de Andrade

Posted by Hello