O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

28.7.04

A casa

Um homem decidiu construir sua casa. Traçou com um graveto no chão onde seriam os quartos, a sala, uma cozinha até espaçosa, o banheiro. Satisfeito com o desenho, começou a construção. Lajeou o pavimento como o caminhar de um bêbado, ergueu as paredes sem prumo e economizando o cimento de má qualidade, que espalhava sobre os tijolos. Decidiu as janelas a esmo, as portas tão pouco foram feitas com esmero, pintou de uma cor até bonita logo depois que, sem cuidados extremos, telhou sua cobertura. Dentro colocou móveis de tímido bom gosto, mas que não refletiam sua desorganizada vida. De improviso pregou sobre as disformes paredes fotos de jornais, seu desleixo era tanto que nem notou que as imagens falavam da seção policial.

Cansado e abatido, sentou-se à sua porta para ver o que de bom sobrava do mundo fora de sua esdrúxula moradia. A noite veio e com ela uma tempestade, o vento soprou e a chuva caiu, como se o céu estivesse de mau humor. Antes de despencar, o telhado gotejou molhando os móveis e soltando a tinta das paredes, que ruíram logo em seguida, a janela da frente foi a primeira a cair, as outras literalmente se partiram no meio, do batente da porta sobraram dois pedaços. Ao final da tempestade boiavam sobre lama e escombros as fotos da seção policial.

Um homem decidiu construir sua casa. Fez a planta em separado, se preocupando com a iluminação, com a ventilação, com a melhor disposição para os cômodos. Terminada, escolheu o local como uma noiva ao vestido. Se preocupou com a posição do sol em relação à casa, para que nos finais de tarde pudesse vê-lo se pôr, e nas manhãs para que ele o viesse acordar. As grandes janelas deveriam dar visão para onde os olhos gostassem. Imaginando o seu futuro, marcou em uma rocha um ponto e escreveu "Aqui começa meu sonho". Ansioso, mas sem pressa, só começou a construção no dia seguinte. Começou pelo alicerce, profundo e bem feito. As paredes, ergueu tijolo sobre tijolo como quem lapida um diamante, o encanamento custou muito, não se vê o encanamento, mas para um longo futuro, teria de ser todo em cobre, um metal de longevidade. A louça do banheiro e os armários da cozinha eram discretos mas em harmonia. Com o mesmo pensamento escolheu a cor para a casa, mas antes de pintar telhou seu teto com esmero, sobre uma base forte e segura. Para o chão escolheu o mais lindo piso de tábua corrida, que mantém o calor no inverno e refresca o ambiente nos longos dias de verão. Depois de colocado, o poliu exaustivamente, até que pudesse se ver refletido no chão. Após pintadas as paredes, mobiliou a casa como uma mãe vestindo o filho pequeno, de forma que o conforto e a beleza fossem cúmplices, nada de formas exóticas, o tempo prefere a discrição. 

Quando terminou tudo, fez um café e se sentou na sala em frente à grande janela para ver o sol se pôr. Embriagado pelo cansaço dormiu ali mesmo no sofá. A noite veio e com ela uma tempestade, o vento soprou e a chuva caiu, como se o céu estivesse de mau humor. As gotas da chuva sobre o telhado murmuravam uma melodia maravilhosa, o vento fazia, nas folhas das árvores, a segunda voz para a canção da chuva, também as fortes rajadas de vento acompanhavam a música empurrando as gotas no vidro da janela. O dia raiou e as gotas da chuva da noite anterior espalharam a luz do sol iluminando aquela casa, que desde então começou a fazer parte da paisagem.