O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

2.8.04

Guarda-chuva

Geraldo chegou na casa do caseiro de chapéu, botas sete-léguas e uma calça jeans velha, nada era dele. A três dias estava de paletó e gravata na sala do reitor da universidade representando a cadeira de genética em uma reunião. Nas casas de fazenda sempre tem uma gaveta com roupas para a lida e as botas não precisavam ser dele, qualquer peão usa um ou dois números maior, fica mais fácil descalçar quando atola.

Zé Bala, o caseiro, abriu a porta e deixou o cheiro de café sair. Após um caloroso sorriso e um sonoro "Bom dia doutor", em um gesto sutil, ergueu as sobrancelhas e o copo dos de requeijão visivelmente faltando alguns goles, na direção de Geraldo, que negou o café oferecido como um balançar de cabeça. "A mulhé cabou de passar", insistiu o caseiro.

Já caminhando na estrada, Zé Bala demonstrava sua hospitalidade mostrando ao doutor as melhorias que sua lida trouxera para a fazenda e, ignorando os conhecimentos científicos de Geraldo, explicava a forma com que enxertava as plantas e como essa técnica melhorara a produção das frutas da propriedade. Ainda, com um ácido orgulho, afirmou que quem não soubesse enxertar e inseminar vacas naquela região deveria procurar emprego na cidade. Os dois riram e se desfez o clima de constrangimento causado pelo duplo sentido da afirmação.

Geraldo, com uma delicadeza monárquica, forjou admiração, riu das piadas e tentou fazer perguntas simples, quase óbvias, quase escondendo seus conhecimentos científicos. Se admirava mesmo do fato de um homem quase analfabeto, conseguir explicar com tanta simplicidade e clareza o que seus alunos, por mais trabalhos, seminários e horas em laboratórios, passavam dois semestres inteiros para entender.

Uma chuva fina começou a cair. Zé Bala correu até uma bananeira, e cortou duas folhas, entregou a maior a Geraldo que titubeou. Após embainhar o facão, o caseiro levou a folha sobre a cabeça e o doutor, disfarçando sua pausa, sorriu, acenou com a cabeça e fez o mesmo.

Zé Bala, notando a admiração de Geraldo disse:

–É um guarda-chuva, doutor. A maioria das coisas que vocês usam lá, a natureza já tinha inventado antes.