O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

16.8.04

O X

Até algumas décadas atrás, nas cidades do interior, o sistema de alto-falantes era a solução tecnológica para entretenimento e informação da população. Todos ouviam as mesmas músicas, as mesmas informações e os mesmos erros dos locutores. É sobre um deles a história quase verídica que lhes conto agora.

Aldair Coutinho, locutor da "Difusora"(sistema de alto-falantes de uma cidadezinha), estava se tornando inimigo público. Seus tropeços no português doíam nos ouvidos de qualquer um que tivesse concluído o ginásio (hoje, chamado ensino médio). Da vidraça em frente à sua mesa, via claras manifestações de reprovação: olhares irados e cabeças se agitando freneticamente em negativas dos passantes. Às vezes passava o programa todo imaginando o que tinha falado de tão grave, até que algum menino trouxesse uma mensagem desaforada de uma moradora inconformada ou do Dr. Deocléssio, advogado que declarara Aldair desafeto pessoal.

O dono da "Difusora" era um fazendeiro que só vinha à cidade às sextas-feiras. Em sua limitada intelectualidade, não via problemas nos erros de Aldair. Mas, uma campanha já estava em andamento para a demissão sumária do locutor, o Dr. Deocléssio até já tinha encontrado embasamentos legais para a prisão do rapaz.

Aldair ficou transtornado ao saber de tal empreitada da população. Sua função era trazer alegria, era tudo que amava, não conseguia se imaginar fazendo outra coisa na vida. Colocou a cabeça para funcionar: talvez um programa com uma cara nova o salvasse da iminente demissão.

Já no dia seguinte, colocou sua estratégia para funcionar: um programa romântico onde, sabiamente, somente leria recados amorosos de ouvintes. Seu primeiro cliente enviava recados a um amor secreto e assinava com suas iniciais, a saber: "Edilâine, seu amor é a flor que espero no meu jardim. Assinado: O X"; "Edilâine, nenhuma flor criada por Deus tem seu perfume. Assinado: O X". Mais de vinte recados foram passados ao longo de toda a programação.

E assim, Aldair, pela primeira vez, viu o sucesso pela vidraça em frente à sua mesa. Os passantes demoravam o olhar, sorrindo e acenado. Ao final do programa, resolveu fazer um desfecho especial, com Cauby Peixoto cantando ao fundo, desfez o mistério do apaixonado secreto: "E eu não sou baú pra guardar segredo de ninguém, O X é Ontôi Xofer"...

Aldair perdeu o emprego e, hoje em dia, quando se procura Dr. Deocléssio, as pessoas da cidade perguntam: "Dr. O X tá aí?"