O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

15.11.04

Visão do Apocalipse com Caxumba - por Maurício Ferreira

Diante do espelho, não é mais incômodo o barulho do lunático barbudo rugindo obscenidades para recém nascidos. Orgulho-me do maxilar inchado, prova definitiva da superioridade da mandíbula sobre o encéfalo. Entretanto, só os dentes frontais podem ser empregados no dilaceramento da carne. Os caninos existem num presente neolítico – intocável porque dolorido – e a protuberância monumental de minha arcada se transforma em parafusos de frankestein escondidos mal e mal pela barba da semana. Bolachas, as rôo com paciência, quinze minutos cada uma. Aceito com tranqüilidade minha metamorfose em capivara bípede, ainda que por dez dias.

O fumo narcotiza a dor e embebeda o tubérculo que engulo na sopa das seis. Quisera, um dia, ser corpo de tigre em nadadeiras de golfinho para percorrer mares e selvas com a naturalidade com que vazo pelas tardes inúteis. Mas afinal de contas, qual o sentido da doença quando passa o martírio? Agora que a febre se foi, o que sobra senão o medo da movimentação do vírus rumo à fertilidade do escroto? Sinto a força da doença substituindo a falsidade dos meus músculos por uma vitalidade unicelular e transmorfa. E então vem à mente a mãe das perguntas felizes: não é um pecado destruir um cristal genético que vive apenas para subverter os estatutos de minhas veias?

Pois que nade até meu saco mole e enrugado e infle todos os canais seminíferos com sua boa nova. Afinal de contas, não queiras o bom e o novo inflamando este mundo velho sem deus nem porteira, não eras tu, ó barbudo do campo, o homem que sonhava em plantar videiras negras e patuás de chifres de bode nos cemitérios da bocadolixo; não estavas cansado da hipócrita preservação do dígito binário como única fonte da evolução humana; não querias instituir o lastro-merda para todos os seres vivos do planeta definitivamente execretarem sua auto-suficiência? Pois bem, diz-me o vírus, eis a tua chance... Posso fazer nadadeira debaixo do barco de alumínio; posso afiar tua agonia até o êxtase. Posso transfigurar-te, fazer de todos os teus cabelos unidos um único chifre de Nerval, do escroto um bigorna e de teus olhos meus irmãos. Seremos seiscentos e Sessenta e Seis trilhões de trindades habitando o mesmo corpo.

Eu esgarço um sorriso e das frestas da saliva dragões viróticos, assas são maiores que o mundo, enfiam o pescoço pelo útero do universo. Abocando de uma só vez todos os anjos pernósticos da alameda Santos e os demônios arrependidos a negociar bíblias na praça da Sé. Fetos anônimos do Apocalipse. Abaixo minhas calças, os testículos caem como corpos que acabam de ser crucificados e passam a acompanhar com interesse cruzadas, guerras santas, e batalhas futurísticas nas arquibancadas de uma estádio de futebol. Coço o saco demoradamente. Ainda não chegou a hora do ovo do Pacaembú escorrer sua gema vermelha para as ruas da cidade. Brigo com um velho que insiste em chamar guerreiros de vândalos. Bah! À puta que pariu com os sonhos pacíficos das Bucetas. Meu saco se foi e já posso esporrar livremente pela boca aberta. Meu gozo se torna um grito lançado pelo cú do mundo. E, acreditem, um dia os machos parirão como os cavalos marinhos e as fêmeas governarão a terra. Continuarão, porém, apanhando de maridos suados, peludos e fedidos e toda essência do feminismo será o chip de champanhe desalcoolizada que o amante sofisticado e bonito oferecerá, com um sorriso de mestre cuca francês, à mulher de cinta-liga preta, nos píxeis das revistas neomoderninhas...

Mas haverá casais sentados no banco da praça para esperar o último crepúsculo. Aguçarão os ouvidos para perceber o crepita dos cometas invadindo nossa atmosfera. Ele tocará os bicos dos seios dela com a ponta dos dedos que avançarão mais e mais até que toda extensão dos vales caibam na palma de sua mão. Ela se divertirá com a semelhança entre o pau dele e um chocalho. Não os incomodarão os policiais e torcedores gritando ao horizonte enquanto masturbam-se com as mão decepadas de papas e políticos. Não pelo contrário, sorrirão e os abraçarão. E os casais virarão tríades, quadrados, trapézios, losangos, pentateucos, octetos, cones, elipses, espirais, até tornarem-se a tessitura viva do planeta agonizante. Então, quando toda a galáxia gritar de revolta e cuspir plasma para demonstrar nossa insignificância, o orgasmo trespassará o apocalipse e um jato potentíssimo de esperma e sucos vaginais foderá a ira santa do Universo, tornando-a o mais mundano dos nasceres solares. E neste fim de ciclo, eu te prometo, o mundo não vai acabar.

E não venham depois me chamar de herético, ou machista, ou reacionário, ou anacrônico, mesmo visionário, profeta ou outra coisa qualquer! Serei então um bode velho e caxumbento pastando asas em carcaças de anjos. O saco arrastando no chão, os olhos a contemplar o vácuo do que foi o paraíso, os chifres afiados nos escombros do Éden. Só faltará então a alegre carreira desgovernada para, a cabeçadas, por abaixo os portais do inferno.