O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

17.3.05

Suassuna e o "galope do sonho"

Ariano Suassuna deu uma entrevista à Folha de São Paulo do dia 4 de março deste ano em que fala de sua carreira, de seus autores prediletos e suas expectativas sobre a literatura e o Brasil.

Compartilho definitivamente com a postura adotada por ele em relação ao nosso governo. Reproduzo aqui este trecho e indico a todos a leitura na íntegra do delicioso encontro de Cassiano Elek Machado, enviado da Folha, que, por coincidência, é irmão de uma grande amiga minha, com este ícone da literatura brasileira.


"...
Folha - O sr. falava em símbolos do Brasil e em seus livros, em especial no "A Pedra", diz que procura retratar o que chama de Brasil real, expressão emprestada de Machado de Assis. Qual a avaliação que o sr. faz do Brasil real de hoje?

Suassuna - Infelizmente não tenho boas notícias para lhe dar. Tem de se sair pelo "galope do sonho e pelo riso à cavalo" se não a gente cai no desespero. A situação do povo do Brasil real está cada vez pior. Vou lhe dizer, e vão me achar reacionário, mas com todos os seus defeitos o regime patriarcal rural era menos duro para com o Brasil real do que o capitalismo urbano e burguês.

O Brasil oficial, Machado dizia que era caricato. Mas acho que teríamos de acrescentar burlesco e às vezes sangrento e brutal, como foi em Palmares, como foi na Pedra do Reino e em Canudos. Quando o povo do Brasil real levanta a cabeça o Brasil oficial vai lá e a corta. Às vezes até literalmente, como com Antonio Conselheiro e Zumbi.

O que mais admiro no povo brasileiro é que com tudo isso ele continua com alegria e energia.

Folha - Continua uma onça?

Suassuna - Continua firme. E ainda tem intelectual por aí que fala mal do povo brasileiro, que é um povo de irresponsáveis. Para mim é de uma grandeza.

Folha - O sr. elogiou o governo Lula quando ele completou seu primeiro ano. Como o sr. enxerga o Brasil oficial de Lula hoje?

Suassuna - Veja bem, a primeira coisa que admiro em Lula é que um homem saído do povo do Brasil real atingiu a posição de presidente do Brasil oficial. Agora tem muita gente por aí, uns impacientes, que querem cobrar de Lula ele não ter resolvido a injustiça brasileira que, para mim, é secular. Você já leu a "Carta" de Pero Vaz de Caminha?

Pois veja que Cabral não foi lá, não. Mandou marinheiros pobres e portugueses. Quando viram que os índios eram pacíficos, trouxeram dois rapazes para conhecê-lo. Ele recebeu os índios em uma cadeira de espaldar alto, com um rico colar de ouro ao pescoço. Diz Caminha, mentindo, que um deles apontou para o colar de Cabral e depois para a terra. Mentira porque os índios não sabiam da importância do ouro para o português.

Ele estava fazendo a pior coisa que um escritor pode fazer, que é querer agradar o poder. Ele conta lá também, em dado momento, que ao sentir sono os índios se deitaram no tapete e dormiram, na maior prova de confiança. Eu não durmo na frente de estranhos. Posso deixar um olho dormir, mas o outro fica aberto. E era um povo muito estranho os portugueses na visão do índio. Neste momento, Cabral está encarnando o futuro Brasil oficial. E o povo do Brasil real é descendente de índios, negros e portugueses pobres. A injustiça é secular. Lula não vai resolver isso em quatro anos.

Existe uma impaciência generosa, mas por outro lado precisamos nos convencer que o tempo histórico não coincide, infelizmente, com o da nossa biografia. Precisa ir aos poucos.

Outra coisa: se Lula for enfrentar, ele termina dando um tiro no peito, como Getúlio deu. Getúlio era do Brasil oficial e deu um tiro no peito, você imagine Lula. Lula tem de se portar como um misto de Quixote e Sancho, e ele tem até um tipo físico de Sancho.

Folha - O Sancho do início ou do final do "Dom Quixote", por que ele começa o romance representando a razão, mas vai ficando louco?

Suassuna - Sancho é contaminado pelo sonho de Quixote. Lula também. Se ele não fosse contaminado pelo sonho de Quixote não teria feito o que já fez. Quem toca o homem é o sonho, não o bom senso.

Folha - Mas então por que o sr. diz que o Brasil real está piorando?

Suassuna - Ah, isto é outra coisa. O que digo é que ele quer fazer, mas o que ele está conseguindo é pouco e o que ele vai conseguir é pouco. Por isso digo que não podemos ser impacientes. Fora daí, você só tem uma revolução.

Vendo no que deram a Revolução Francesa e a Soviética eu lhe pergunto: vale a pena?

Só Stálin matou 10 milhões de pessoas para implementar uma nova política econômica. Voltou tudo a uma estaca zero agora. Vale a pena a gente submeter o povo brasileiro a uma aventura dessas? Estou com Lula e não abro.
..."

Folha Online, Ilustrada, 04/03/2005

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Ainda estou trabalhando na 2a parte do conto "Olhos na Pele ", por favor, aguardem.

13.3.05

Acontece

Esquece nosso amor, vê se esquece.
Porque tudo na vida acontece

E acontece que eu já não sei mais amar.
Vai sofrer, vai chorar, e você não merece,
Mas isso acontece.

Acontece que meu coração ficou frio
E o nosso ninho de amor está vazio.

Se eu ainda pudesse fingir que te amo,
Ah, se eu pudesse
Mas não posso, não devo fazê-lo,
Isso não acontece.

Cartola

11.3.05

Olhos na Pele - Parte 1

Foi um fim-de-semana maravilhoso. Paulo, Murilo e Cadu acamparam na beira de um riozinho com uma pequena cascata, após encontrar a vila lotada. Fizeram longas caminhadas na mata e visitaram pelo menos dez cachoeiras. À noite, o cansaço encurtou as horas à beira da fogueira, bebendo catuaba e falando besteiras até pegar no sono.

O retorno foi complicado. Chegaram à vila muito tarde e o transporte para a cidade mais próxima já tinha partido. Arranjaram uma carona que não ajudou muito, pois, o último ônibus queimara a estrada quinze minutos antes de chegarem à rodoviária. Dali a duas horas um pinga-pinga (um destes que para em qualquer lugar) passaria por ali. Cadu lembrou aos amigos que estavam no meio do cerrado e que nas cinco horas da vinda só haviam passado em três ou quatro cidades, somando à exaustiva movimentação do dia e ao adiantado do relógio, nem mesmo notariam o incômodo.

Paulo sentou-se na 38, Cadu e Murilo, 44 e 45. O cansaço cobrou sua indulgência.

O ônibus diminuiu a velocidade. Para um número enorme de sofredores, aquela mínima variação no movimento faz acordar. Paulo abriu os olhos, a vista ainda enevoada contou três ou quatro entrarem no ônibus que, pelo que lembrava, estava lotado. Com os olhos entreabertos observou um sentar-se em um banco vazio e os outros acomodarem-se como podiam. A luz dos faróis em uma leve neblina transformava os novos passageiros em silhuetas. Um corpo feminino se aproximou e tomou o braço de sua cadeira como assento.

A natural raiva da perda do encosto foi trocada por uma sensação esquisita, aquele corpo cheirava bem, parecia bem feito, de perto dava para notar a perfeição da pele do braço, deliciosa. Um frio subiu do estômago à garganta. O quadril da moça estava encostado nele, era macio e, lentamente, Paulo puxou o ombro para cima. Sentiu a textura do tecido do vestido que, naquele momento, sua cabeça imaginava ser lindo. Desceu o braço lentamente, num movimento longo o bastante para fazer-se notar e discreto o bastante para não afastar a moça.

Paulo fechou os olhos, não importava muito, pois, naquela escuridão não fazia diferença, é que quando usamos a imaginação, temos o hábito de tentar burlar a visão. Girou o pulso e encostou os dedos no braço da cadeira. Esticou a palma da mão lentamente tentando esbarrar na perna da moça, até que a ponta do indicador encontrou o que procurava. Sua excitação declarara guerra à consciência, seu instinto esmurrava a razão. Andou meio centímetro com o dedo, o bastante para cartografar mentalmente a maravilhosa textura da pele embaixo do curto vestido.

Continua...