O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

19.6.04

Quem é doido?

Eu acho um saco quando alguém diz: “Cara, eu sou muito doido” ou, quando alguém quer atribuir loucura a outro e diz: “Ele é mais doido que eu”. Uma certa vez, em um desses dias de pavio curto, eu disse para um indivíduo que se vangloriava das pálidas despadronizações que havia feito: “Tá vendo a unha do meu pé? Nos últimos 10 anos, pode ter certeza, ela fez mais loucura que você na vida toda e eu me acho um careta”. Eu fico lembrando do “O Alienista”, de Machado de Assis, onde a gente não sabe distinguir quem é o doido e quem não é. Talvez, por este livro ter me marcado muito, eu sempre me indaguei sobre a normalidade das pessoas. Ainda tem aquela máxima que eu, pessoalmente, uso muito: De perto, ninguém é normal.

Nas cidades do interior, é comum a profissão de “doidos da cidade”. Para qualquer um que não se encaixa nos padrões sociais, as pessoas não demoram a dar o título. A pessoa vive com 5 gatos, é doido, a pessoa anda com uma sacola velha, é doido, a pessoa cata guimbas de cigarro no chão, é doido. É quase um título social, um personagem imprescindível na vida da cidade, como o padeiro, o padre, o farmacêutico. As crianças jogam pedras, as mães dizem para elas não se aproximarem, os donos de bar dão comida, o padre não deixa ele comungar. É sempre a mesma história.

Não haveria de ser diferente em uma cidadezinha cuja história lhes conto agora. Lá havia um doido que, no auge de sua insanidade, ia para uma ponte com a mão cheia de farelo de pão e alimentava os passarinhos. Não tenho elementos para descaracterizar a profissão de “doido da cidade” do rapaz, mas, o comentário que se seguia cabia perfeitamente na boca de Simão Bacamarte, protagonista do livro de Machado de Assis: “Ele era tão fora da realidade que os passarinhos não tinham medo dele e vinham comer em sua mão”.

Semana passada fui tomar um café em uma padaria. Comprei um salgadinho para acompanhar, sentei em uma mesa do lado de fora, comi tranqüilamente, como se fosse a última coisa que faria na vida. Quando estava para acabar, um pardal pousou no encosto de uma cadeira da mesa ao lado. Sem muitos pensamentos, tirei um pedaço do salgadinho e coloquei na mesa, em frente ao passarinho. Para minha agradável surpresa, ele olhou para mim, desceu e pegou o salgadinho, voltou para o encosto, olhou de novo, como se quisesse agradecer e foi embora.

Acho que eu iria ser muito doido se morasse na tal cidadezinha.

16.6.04

A Exposição!

Que prazer maior poderia encontrar Afonso ao chegar em sua cobertura, depois de horas no trabalho, em frente a um monitor de computador, vendo os numerozinhos subindo e descendo, que preparar seu whisky, tirar a roupa, ligar a banheira e ir observar a passagem dos sete minutos e meio necessários para enche-la na imensa sacada. O whisky na mão direita, a mão esquerda sobre a cabeça, as pernas abertas, apoiando o peso do corpo sobre a perna esquerda. Era como se o mundo todo lá em baixo se rendesse à sua forjada grandeza.

Naquela noite, um amigo havia lhe falado de um vernisage de um artista paulistano que era a promessa da arte contemporânea no Brasil. “Urbanóides” ou “Urbanídeos” era o título da exposição, não importava muito pois, como tantos outros, Afonso ia para ser visto, comer os maravilhosos canapés e ligeiramente se embriagar com bons vinhos. Comprar um quadro nem pensar, ainda estavam no armário aqueles que comprou em Embú das Artes para impressionar uma loira de farmácia que só lhe deu dores de cabeça.

Estavam na tal exposição o Edgar Scandurra, a Rita Ribeiro, o Marcelo Rubens Paiva, entre outras figuras que freqüentam a noite paulistana, sem contar a turma de cabelos azuis, amarelo ouro, rosa, com suas tatuagens extravagantes e cheirando a brechó. Seguindo o protocolo, Afonso bebeu um vinho com os amigos e seguiu a peregrinação recheada de comentários eloqüentes e vazios pela exposição.

Realmente o artista era impressionante, captou com maestria a essência da vida urbana em São Paulo. O performático da Paulista, aquele com as roupas coloridas e sua sombrinha que usa canteiro central como passarela, estava na primeira tela, depois o travesti mendigo, com suas bochechas enormes acompanhadas pela tristeza dos traços em sua face, em seguida os homossexuais da consolação, os playboys do Açaí na Faria Lima, o pastor solitário da Sé e ...estava lá: o corpo nu, o whisky na mão direita, a mão esquerda sobre a cabeça, as pernas abertas, apoiando o peso do corpo sobre a perna esquerda.

Afonso sentiu uma vertigem iminente e as pernas bambearam. Queria estar em qualquer lugar, menos ali em frente a sua imagem desnuda em uma posição tão confortável. Uma senhora ao lado agitou os olhos notando a semelhança entre o personagem e o observador asustado, porém, Afonso estava muito mais amarelo que aquela figura tão descontraída.

Correu os olhos até a plaqueta do preço, onde o nome do quadro dava o golpe de misericórdia em sua auto-estima, estava lá: ”Estrañesa Insólita”. Queria imaginar onde sua nudez pudesse valer os quatro mil e quinhentos reais em negrito e rapidamente quis imaginar onde arranjaria esta quantia para tirar da vista daquele povo todo seu momento mais sublime, mais introspectivo. A bolinha vermelha pregada na plaqueta delatava o agrado do público! Quem havia comprado sua nudez? Com um discreto movimento no pescoço, passou os olhos nas pessoas ao redor. Devia ser alguém rico, um excêntrico, é como chamam os loucos ricos. Esses marchants são umas raposas na pele de cordeiro, com certeza o preço triplicaria se Afonso se mostrasse interessado.

Pensou em pular na frente do quadro e arranca-lo dali, mas, e a Arte? Ficou imaginando como o artista deveria se orgulhar daquela desconfortável obra, para pedir quatro mil e quinhentos reais, o vernisage tinha acabado de começar e já haviam comprado o quadro! Uma tempestade de pensamentos caiam-lhe à cabeça, “Arte pela arte”, “A história da humanidade passa na ponta do pincel de um grande pintor”, “Ali onde você vê uma pedra eu vejo um anjo, basta eu tira-lo dali”. E a tal história sobre um artista paulistano que era a promessa da arte contemporânea no Brasil, por um instante Afonso até se imaginou famoso, uma Monalisa moderna, o ícone da sociedade no homem nu que segura a cabeça e um copo de whisky.

Caiu em si! O sucesso é uma faca de dois gumes! Naquela posição, os homossexuais não o deixariam em paz e as mulheres iriam sempre olha-lo como um esquisitão. Imaginar que não poderia mais freqüentar anonimamente a noite cultural paulistana era horrível, comer canapés sendo observado perde a graça. A ligeira embriagues? Nem pensar! Isso tudo sem falar no fim de sua privacidade. Quantas e quantas pessoas iriam querer conhecer sua vida, excursões de grupos de terceira idade à sua enorme sacada, a revista Caras especial “Estrañesa Insólita” com fotos inéditas do seu apartamento. Pior ainda seria virar uma celebridade naturalista, as pessoas pedindo para que tire a roupa em público, como se aquilo fosse tão natural, logo Afonso que só usa o mictório se não tiver nenhum vaso sanitário livre.

Olhou para a saída, fixou os olhos em um ponto qualquer fora dali, movimentou o corpo naturalmente, como se estivesse saindo de sua banheira para voltar a seus Cem Anos de Solidão que a dias não saia de sua cabeceira. Enquanto tudo ia ficando para traz o quadro continuava ali, pendurado na sua cabeça. O pior de ser observado é se sentir observado. Afonso simulou um sorriso, pegou mais um copo de vinho, bebeu em uma talagada só, devolveu à bandeja, e sua mão retornou com outro, agora bebido conservadoramente. Este segundo ficou com o rapaz do estacionamento.

Naquela noite Afonso não dormiu. No dia seguinte, chegando do trabalho, preparou seu whisky, tirou a roupa, ligou a banheira e foi observar a passagem dos sete minutos e meio para enche-la na imensa sacada, o whisky na mão direita, a mão esquerda sobre a cabeça, as pernas abertas, apoiando o peso do corpo sobre a perna esquerda, vestido em um confortável roupão azul ainda cheirando a plástico e a dois metros do parapeito.

15.6.04

A fama e a fortuna

A sorte é um negócio que a gente não entende mesmo. O cara é sobrinho do Chico Anísio, o pai é um dos grandes nomes do cinema nacional, caiu nos braços da Globo ainda criança, segundo a imprensa especializada, teve flertes com Camila Pitanga, Flávia Alessandra, Cristiana Oliveira, Letícia Sabatella, Adriana Esteves, Débora Bloch e outras. Na lista de suas conquistas românticas estão a cantora Vanessa Barum, sua ex-mulher, Ana Paula, jogadora de vôlei, e as atrizes Ana Paula Arósio, Alessandra Negrini e Luana Piovani, tronando sua vida sentimental invejada por qualquer solteirão mal sucedido. Já ganhou uma montanha de prêmios, até internacionais. O que mais impressiona é que sempre parece que sua carreira está só decolando.
A tocha olímpica vem para o Brasil. 120 pessoas representando o povo brasileiro tem o prazer de carregar a, já patrocinada por Globo e Coca-cola, chama do espírito desportivo. Não sei porque me admiro, quem está lá? carregando o tal fogo? Marcos Palmeira.
Desfazendo meu ar de admirado, fiquei imaginando: O cara chega em casa, todo suado, mesmo tendo carregado uma tocha de fibra de carbono por apenas 500 metros, tira o tênis, no caminho para a geladeira, a procura de um copo d’água, nota um recado no celular. A saber:
- Marcos? é a Angélica, tudo bom? É que eu briguei com o Luciano, tô meio chateada, e queria saber se você topa vir aqui em casa pra a gente conversar um pouco. Me liga!
Daí, acontece. O cara acorda de manhã, olha pro lado, vê a Angélica dormindo, do jeito que veio ao mundo (use qualquer outra frase feita que explique a cena). Pessoalmente, com o currículo dele, pensaria: “Já tive noites melhores”. Ele começa a analisar o corpo dela, as formas, as curvas, a manchinha na perna esquerda... Curiosidade é curiosidade, não tem motivo. De repente vem uma vontade louca de passar o dedo na mancha mais famosa da TV, só pra ver se sai. Ele vai devagarinho, lentamente e começa a dar uma raspadinha na perna da loira. Opa! tem alguma coisa escrita: - Vale um carro 0 km!
A sorte é um negócio que a gente não entende mesmo.

13.6.04

Santa Campanha Publicitária

Um padre, lá no começo da Igreja católica, realizou um suposto milagre de fazer uma namoradinha enxergar, virou santo. Não quero entrar em assuntos de dogma religioso ou coisas afins, mesmo porque não me aprofundarei na sua biografia. No século 17, ingleses e franceses começaram a comemorar o dia de sua morte, o Dia de São Valentim, como o Dia dos Namorados. Os norte-americanos (cristãos reformados em sua maioria, o que me deixa mais confuso, por terem uma visão diferente de santidade) adotaram a data, um século depois. Transformaram-na em uma espécie de celebração da amizade, colorida ou não. Até aí, legal.
Em 1949, foi pedido a um famoso publicitário brasileiro, o Sr. João Dória, que criasse uma campanha para aumentar as vendas nos meses magros para o comércio (que na época eram os meses de maio, junho e julho). Bastou juntar os pauzinhos. Não se conhece esse santo no Brasil, nem mesmo é comum conhecermos gente que se chama Valentin, normalmente é gringo. A tradição de Santo Antônio é muito mais forte. Então, qual é o dia do santo casamenteiro? 13 de junho. A pitada final: comemorar um dia antes, para não ofender os fiéis. Perfeito! Obrigado “São” João Dória, padroeiro dos motéis, das floriculturas, fábricas de chocolate,... ou seria dos estelionatários? Me desculpem a pressa, estou indo levar minha namorada para jantar.

3.6.04

Moleque homônimo

Vocês já se perguntaram por que o personagem infantil das nossas piadas se chama Joãozinho? Eu já. Logo o meu nome?!?! Bem que podia ser Zequinha, ou Tião, ou talvez um nome indígena como Ari ou Perí, daria até um tom genuinamente tupiniquim, incentivando um bom ufanismo nas pessoas. Mas não, tinha que ser meu nome, o qual gosto tanto. O problema é a imagem do Joãozinho: rebelde, impulsivo, no limite entre sacanagem e inocência, logo eu que, até os nove ou dez anos, defendia com eloquência a tese na qual a troca de fluidos orais desencadeava um processo que culminava no nascimento dos bebes, e só alguns anos depois parava de ajoelhar do lado da cama para rezar. Então eu fui tentar imaginar a cara do Joãozinho, como era este homônimo que estava me incomodando. Para minha surpresa foi meu rosto que vi, estava tudo respondido, na verdade Joãozinho é o amalgama da criança que eu quis ser, até me arrisco em dizer que todos nós queremos ter um pouco de Joãozinho, com uma resposta na ponta da língua cada vez que esbarramos em alguém, e o limite entre a sacanagem e a inocência me pareceu o lado legal de se descobrir criança depois que a infância fica no passado.

1.6.04

Inauguração

No sítio de um amigo, em São Francisco Xavier, lado paulista da Serra da Mantiqueira, são avistados, várias vezes na noite, clarões no céu, como flash de máquina fotográfica. Tal fenômeno poderia ser confundido com raios, se, curiosamente, não fossem vistos somente em noites estreladas.

Após anos duvidando da versão oficial(fenômenos geológicos), associei uma informação recebida inocentemente à luminescência percebida no céu das terras dos Hardt.

Sendo uma região de mata atlântica ainda preservada, com animais nativos quase extintos, como o Mono Carvoeiro ou o Tiê Sangue, conclui-se a possibilidade de haver também remanescentes de seres extraordinários.

Me recompondo do ódio de engolirmos sem reclamarmos tipos como pés grandes, vampiros, múmias mortivivas, até horripilantes mãozinhas sem corpos, esclarecendo para minha consciência que advertimos as criancinhas do fato de serem somente entidades televisivas, que existem somente na imaginação secular, resolvi fomentar a quase apagada brasileiridade dos fenômenos extraordinários que habitam os restos de nossa tão amada natureza.

É o Boitatá! Ultimamente este ser extraordinário em extinção tem tido muito trabalho. Víbora alimentada com os olhos de muitos índios e animais, lança clarões onde trabalhadores rurais ateiam fogo, defendendo, assim, as matas habitadas pelos espíritos de suas vítimas. Quem avista boitatá ou fica cego ou enlouquece com a visão dos milhares de olhos enfurecidos, pode até chegar a morrer de susto. A sutileza, ou discrição ou palidez das luzes no céu noturno é explicada por três fatores: a distância do real foco de incêndio defendido, a escassez de índios e animais (que dão poder ao Boitatá) e o processo de extinção avançado que sofre este ser, pois, além da destruição da mata, a falta de credibilidade, posto que, quando há um avistamento, logo se associa a outra entidade televisiva, o OVNI, o brilho dos olhos dos índios e dos animais é descrito aos turistas maconheiros como centenas de luzinhas brilhando na "fuselagem" do disco... E assim morre mais um Boitatá. Alguns loucos podem jurar que viram um disco, são as últimas vítimas do pobre ser extraordinário.

Minha nova tristeza: no dicionário que usei para corrigir este post, na parte onde estava: "pés grandes, vampiros, múmias mortivivas, até horripilantes mãozinhas sem corpos", não tinha nenhum risco vermelho, qual minha surpresa? descobri que a única palavra desconhecida era o pobre Boitatá.