O Boitatá

Crônicas e observações sobre o cotidiano.

31.8.04

Disfarce

Ela passou de um lado para outro da rodoviária várias vezes. Usava uma calça jeans maior que o seu tamanho com a barra dobrada, suja ou velha, não dava para saber, uma camisa social – velha – amarrada na cintura, sobre uma camiseta branca, um cinto enorme, uma bolça branca com as bordas de plástico preto rachado pelo tempo, um pedaço de pano – velho – amarrado no cabelo, com o nó para cima, formando uma espécie de tiara. É difícil dizer se era bonita, tinha as marcas da falta de cuidado, se assim se pode dizer de uma pessoa com tantos apetrechos estéticos: magra, cabelos cortados mas estragados, pele manchada e mãos grossas.

Passou uma vez e a única coisa que se notava era o passo rápido, o olhar sério e uma ponta de cigarro segurada com as pontas dos dedos. Na segunda os detalhes foram aparecendo, o conjunto estético era único, mesmo na rodoviária, onde classes e tribos se encontram fingindo estarem sós. Na terceira seu disfarce ficou frágil: Os passos rápidos não iam a lugar nenhum, a ponta acesa parecia nunca acabar.

Confundir-se com os outros sem ser notada a faz mais uma, a torna cidadã, o que, para ela, que já não é nada, deve ser um grade prazer.

23.8.04

A Mais Rápida

Meu nome é Yuliya Nesterenko, sou da Bielorússia e corro os 100 metros rasos. Cheguei aqui em Atenas dia 12, era véspera da abertura e a vila olímpica parecia uma grande festa, todos se cumprimentavam e sorriam. Eu, por alguns instantes, tirei o peso que levo em minhas costas.

O esporte no meu país é levado muito a sério, mas, depois do desmembramento da União Soviética ficamos com dificuldades econômicas e o governo reduziu muito o investimento. A vida de um atleta de ponta são as competições internacionais, com viagens, alimentação especial e tênis, um por corrida, por isso, tenho que ser a melhor para poder continuar a trabalhar.

Sei que tenho chances de medalha, meus tempos foram os melhores, mas tenho alguns milésimos de segundo a menos que a americana Lauryn Williams e carrego duas olimpíadas no meu currículo, meus 34 anos pesam nos últimos metros.

As americanas têm tudo do melhor, até as palmilhas são especiais. O investimento nelas é altíssimo. Ninguém comenta aqui, mas, todos sabem o que acontece lá, o treinador da equipe de atletismo, o Trevor Graham, foi, até 2001, sócio do Balco (laboratório que fabricava o esteróide THG).

Eu tenho que confessar que fiquei contente com a eliminação da americana Torri Edwards. Aqui, em Atenas, o mundo todo acompanha os testes anti-doping. Ninguém sabe como eram feitos nas outras competições internacionais, ou quanto custava para as confederações esconder os resulados. Os norte-americanos só foram declarar doping dos atletas quando viram que o COI iria pegar pesado. É o mesmo caso da Ekaterini Thanou, a grega, ela era um símbolo nacional, quando viu a pressão do COI desistiu de competir.

Não vou mentir, em algum momento da carreira você acaba caindo na tentação. Nós, atletas de ponta, somos o tempo todo seduzidos pelos laboratórios que juram que essa ou aquela droga ainda não está na lista do COI, foi assim que os americanos se deram mal. Não dá para negar que a estrutura que eles têm cria fenômenos, mas, que a usem de forma legal.

Eu fiz o meu melhor, se tivesse a experiência que tenho hoje, com certeza teria sido o orgulho do meu país no últimos treze anos. Os que me assistem, que torcem por mim, sabem muito pouco do tanto que sofro. Para se ter uma vaga idéia do esforço físico: raramente meu corpo entra em estado de menstruação, é o custo por querer ser a melhor.

Hoje é o grande dia. São 10 horas da manhã aqui em Atenas e daqui a uma hora estarei ao lado das sete melhores corredoras do mundo. Tem uma jamaicana que está me preocupando e a Lauryn Williams tem a pressão de 20 anos de supremacia norte-americana para defender.

Agora elas vão sair da minha cabeça lentamente. Agora a chegada está aparecendo lá na frente. Vou me imaginar feliz e lá do outro lado...

O resultado

16.8.04

O X

Até algumas décadas atrás, nas cidades do interior, o sistema de alto-falantes era a solução tecnológica para entretenimento e informação da população. Todos ouviam as mesmas músicas, as mesmas informações e os mesmos erros dos locutores. É sobre um deles a história quase verídica que lhes conto agora.

Aldair Coutinho, locutor da "Difusora"(sistema de alto-falantes de uma cidadezinha), estava se tornando inimigo público. Seus tropeços no português doíam nos ouvidos de qualquer um que tivesse concluído o ginásio (hoje, chamado ensino médio). Da vidraça em frente à sua mesa, via claras manifestações de reprovação: olhares irados e cabeças se agitando freneticamente em negativas dos passantes. Às vezes passava o programa todo imaginando o que tinha falado de tão grave, até que algum menino trouxesse uma mensagem desaforada de uma moradora inconformada ou do Dr. Deocléssio, advogado que declarara Aldair desafeto pessoal.

O dono da "Difusora" era um fazendeiro que só vinha à cidade às sextas-feiras. Em sua limitada intelectualidade, não via problemas nos erros de Aldair. Mas, uma campanha já estava em andamento para a demissão sumária do locutor, o Dr. Deocléssio até já tinha encontrado embasamentos legais para a prisão do rapaz.

Aldair ficou transtornado ao saber de tal empreitada da população. Sua função era trazer alegria, era tudo que amava, não conseguia se imaginar fazendo outra coisa na vida. Colocou a cabeça para funcionar: talvez um programa com uma cara nova o salvasse da iminente demissão.

Já no dia seguinte, colocou sua estratégia para funcionar: um programa romântico onde, sabiamente, somente leria recados amorosos de ouvintes. Seu primeiro cliente enviava recados a um amor secreto e assinava com suas iniciais, a saber: "Edilâine, seu amor é a flor que espero no meu jardim. Assinado: O X"; "Edilâine, nenhuma flor criada por Deus tem seu perfume. Assinado: O X". Mais de vinte recados foram passados ao longo de toda a programação.

E assim, Aldair, pela primeira vez, viu o sucesso pela vidraça em frente à sua mesa. Os passantes demoravam o olhar, sorrindo e acenado. Ao final do programa, resolveu fazer um desfecho especial, com Cauby Peixoto cantando ao fundo, desfez o mistério do apaixonado secreto: "E eu não sou baú pra guardar segredo de ninguém, O X é Ontôi Xofer"...

Aldair perdeu o emprego e, hoje em dia, quando se procura Dr. Deocléssio, as pessoas da cidade perguntam: "Dr. O X tá aí?"

9.8.04

O Grito

Um olhar distante e perdido
é o pão dos pobres quando me fita,
o cheiro forte de radema
e o silêncio a me incomodar.

O seu sorriso sopra a paz
e minha alma volta a se acomodar,
doce ilusão entender você,
e o silêncio permanece.

Seu toque quase não dissolve minha angústia
e, antes que se forme o grito,
sua boca me interrompe

a respiração alterada é o sinal,
o corpo diz o que quero:
o beijo venceu o silêncio.

2.8.04

Guarda-chuva

Geraldo chegou na casa do caseiro de chapéu, botas sete-léguas e uma calça jeans velha, nada era dele. A três dias estava de paletó e gravata na sala do reitor da universidade representando a cadeira de genética em uma reunião. Nas casas de fazenda sempre tem uma gaveta com roupas para a lida e as botas não precisavam ser dele, qualquer peão usa um ou dois números maior, fica mais fácil descalçar quando atola.

Zé Bala, o caseiro, abriu a porta e deixou o cheiro de café sair. Após um caloroso sorriso e um sonoro "Bom dia doutor", em um gesto sutil, ergueu as sobrancelhas e o copo dos de requeijão visivelmente faltando alguns goles, na direção de Geraldo, que negou o café oferecido como um balançar de cabeça. "A mulhé cabou de passar", insistiu o caseiro.

Já caminhando na estrada, Zé Bala demonstrava sua hospitalidade mostrando ao doutor as melhorias que sua lida trouxera para a fazenda e, ignorando os conhecimentos científicos de Geraldo, explicava a forma com que enxertava as plantas e como essa técnica melhorara a produção das frutas da propriedade. Ainda, com um ácido orgulho, afirmou que quem não soubesse enxertar e inseminar vacas naquela região deveria procurar emprego na cidade. Os dois riram e se desfez o clima de constrangimento causado pelo duplo sentido da afirmação.

Geraldo, com uma delicadeza monárquica, forjou admiração, riu das piadas e tentou fazer perguntas simples, quase óbvias, quase escondendo seus conhecimentos científicos. Se admirava mesmo do fato de um homem quase analfabeto, conseguir explicar com tanta simplicidade e clareza o que seus alunos, por mais trabalhos, seminários e horas em laboratórios, passavam dois semestres inteiros para entender.

Uma chuva fina começou a cair. Zé Bala correu até uma bananeira, e cortou duas folhas, entregou a maior a Geraldo que titubeou. Após embainhar o facão, o caseiro levou a folha sobre a cabeça e o doutor, disfarçando sua pausa, sorriu, acenou com a cabeça e fez o mesmo.

Zé Bala, notando a admiração de Geraldo disse:

–É um guarda-chuva, doutor. A maioria das coisas que vocês usam lá, a natureza já tinha inventado antes.